Numa era em que a verdadeira noção de patriotismo havia sido deformada, Dr. Plinio demonstra aos brasileiros qual é o verdadeiro sentido desta palavra, e quais os verdadeiros valores desta Nação tão grande no seu tamanho, na sua vocação e na sua missão histórica.
Um dos erros mais nefastos de que foi impregnada a educação de minha geração foi o patriotismo entusiasmado e incondicional, que se impunha em todas as escolas, como um inelutável imperativo da Moral.
Em via de regra, não havia, nem mesmo em certos cursos de Religião, uma explicação esclarecida e consciente do que seja a virtude do patriotismo, o seu exato sentido, os deveres que ela impõe e as deformações com que o espírito do mundo costuma desfigurá-la.
Em muito mais de 50% dos casos, ser patriota era achar que o Brasil é o mais rico país do mundo, que não há aqui um palmo de solo que não seja imensamente fértil, um palmo de subsolo que não seja imensamente rico, e um litro de água de rio ou de mar que não seja imensamente piscoso. A esta torrente de riqueza, acrescente-se uma beleza incomparável: em nenhum lugar do mundo é permitido haver um sol tão claro, estrelas tão numerosas, mar tão azul, cumes dos montes que ofereçam panoramas mais belos, vales que proporcionem remansos mais tranquilos e mais atraentes do que no Brasil.
Achar o contrário é ser um indivíduo sem inteligência e sem patriotismo. Sem inteligência, porque até as aves do poeta perceberam estas belezas e riquezas, a tal ponto que gorjeiam aqui de um modo diverso do que acontece no mundo inteiro, e muito deplorável seria que um homem não percebesse o que até as aves percebem! Sem patriotismo, porque é achincalhar sua própria pátria avançar timidamente a opinião de que talvez haja lugares mais férteis alhures, por esse mundo afora, do que as zonas velhas de São Paulo ou certas caatingas do Norte do Brasil. Como? Então, pode-se admitir que um brasileiro reconheça que talvez as florestas da Índia ou as pastagens da Suíça sejam mais aproveitáveis do que o mais surrado e mais estéril dos palmos de nosso território? Não é isto um crime de alta-traição?
Como todos os erros que se apresentam dissimulados no meio de uma forte dose de verdade, também esse erro não tardou em se propagar e adquirir ares de verdade dogmática e intangível. Todas as aparências conspiravam para isto. Porque, se é estúpido imaginar que no Brasil tudo deva ser necessariamente superior ao que existe em outros países, é certo, por outro lado, que a Providência nos galardoou com escolhidíssimos dons naturais.
Destes dons, o Brasil tem alguns que nenhum outro país do mundo pode se jactar de possuir. Outros, nós os temos em grau apreciável, embora menor do que certas regiões da Europa, da Ásia e da África. Raros, entretanto, são os países que podem inventariar em seu território uma tão larga, tão rara e tão preciosa série de riquezas quanto o Brasil. Poder-se-ia imaginar, para o patriotismo de quinquilharia, um pretexto melhor, a fim de fazer circular a ufania jactanciosa e falsa que o caracteriza?
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Há muita gente que imagina que a única forma de combater uma verdade consiste em negá-la redondamente. Este é apenas o processo dos simplórios. O modo mais subtil e mais perigoso consiste em exagerar a verdade. Com isto, a gente fornece aos seus adversários pretextos para combatê-la, e a gente a desacredita no espírito dos que a amam. Por isto mesmo, a Igreja não tem, talvez, inimigos mais perigosos do que os que pretendem ser mais austeros, mais penitentes e mais ortodoxos do que o Papa manda que se seja. Talvez a pior forma de heresia consista em pretender-se ser mais católico do que o Papa.
Foi isto que se deu com o patriotismo. Os literatos do fim do século passado e do início deste século o laicizaram, lhe tiraram todo o conteúdo sério e o exageraram, dando-lhe uma extensão e uma pretensão injustificáveis. Tanto bastou para que, no seio de minha geração — que foi talvez a última leva de cobaias desta sinistra experiência ideológica —, o patriotismo, por uma compreensível reação, começasse a ser substituído pela fascinação do internacionalismo esquerdista ou do cosmopolitismo. Deste, sobretudo, nas classes mais ricas e mais elevadas de São Paulo.
Para justificar tal reação, os mais claros pretextos eram fornecidos pela própria escola de patriotadas em que fôramos formados. Realmente, basta andar um pouco pelo interior, para certificar-se a gente de que Deus deu ao Brasil uma riqueza imensa, mas que nem por isto o dispensou da lei comum de todas as regiões da Terra, que consiste em ter também certas porções muito menos aproveitáveis para o uso atual do homem. Desta verificação, nasceu um espírito de blague fácil e elegante. Tornou-se divertido fazer graças a respeito da “Pátria amada, idolatrada, salve, salve”.
O patriotismo é uma virtude sublime. Tanto basta para que todas as suas deformações e corrupções possam facilmente ser postas a ridículo: “corruptio optimi pessima”. E, por isto, com um espírito criminosamente iconoclasta, com um sorriso displicentemente revolucionário, muitos e muitos elementos de minha geração apostataram da escola oficial do patriotismo de convenção.
Outros, talvez, fizeram pior. E confesso que, se não fosse o Catolicismo, único parapeito que o homem encontra entre si e o abismo, também eu teria alguma complacência para com este erro. Procede ele de uma reflexão também sugerida pelo patriotismo convencional que circulou (deve-se falar no pretérito perfeito, ou no presente?) por aí. Admitamos que o Brasil seja tudo quanto se diz. E o homem? O que faz o homem no Brasil? Por que não foi ele capaz de aproveitar estas riquezas para construir uma civilização de forte conteúdo espiritual e de alto valor material? País muito novo? E os Estados Unidos, cuja civilização, se não tem o primeiro requisito, tem ao menos o segundo?
Daí uma atitude de desolação vexada e irritada para com o homem brasileiro, atitude esta aguçada pelo endeusamento sistemático de tudo quanto era europeu, que também se notou em nossa educação. Positivamente, como disse alguém com muito espírito e muita verve, conquanto sem nenhuma razão, o Brasil é um deserto de homens e de idéias. Um povo tão incapaz, habitando um país tão magnífico, dava-me uma impressão não muito diversa dos gregos dos séculos anteriores ao nosso, habitando com uma inconsciência revoltante ao lado dos monumentos inesquecíveis, erguidos pelo talento de seus avós.
Ingenuamente, eu e muitos como eu, deixamo-nos persuadir mais ou menos de que o samba, as modinhas dengosas e lascivas,(…) a escassez de manifestações artísticas de real valor, eram expressões autênticas e definitivas do vácuo interior da alma nacional. Muitos literatos da famosa escola do patriotismo incondicional, apregoavam tudo isso como distintivo do brasileiro, e procuravam ver em tudo isso algum pitoresco. Esse pitoresco não nos seduzia, mas, pelo contrário, nos repelia. E daí um divórcio profundo entre nós e a alma do Brasil.
Mas — e entrou aí um imenso “mas”, um “mas” salvador e orientador, com tudo quanto procede da Igreja — a Doutrina Católica é incompatível com semelhante modo de ver.
Todos os povos foram criados por Deus e para Ele. E nenhum deles foi tão desfavorecido pela divina munificência, que seja incapaz de se separar, com o auxílio da graça, até mesmo dos piores e mais graves defeitos morais. Essa imagem de um Brasil irremediavelmente mole e sensual, de um Brasil definitivamente preguiçoso e inepto, de um Brasil inseparável da modorra, do comodismo, do espírito de transigência e de acomodação, é uma imagem que insulta o próprio Criador. O Brasil tem, certamente, em dose desigual, esses defeitos. Mas é uma blasfêmia supor que, com o auxílio da graça, tais defeitos não possam ser removidos. Pensar assim é cair no materialismo mais crasso e no mais criminoso determinismo.
Um exame mais atento da História do Brasil convenceu-me, por outro lado, que os fatos demonstram à saciedade a grandeza de alma com que Deus dotou o brasileiro. Basta ler, sobretudo, nossa história religiosa, para que se possa ver claramente que o brasileiro, quando se empolga por um ideal que dele se apodera inteiramente, é capaz de chegar aos mais extremos sacrifícios, aos mais árduos esforços, às mais absolutas privações. É um erro imaginar que o indiferentismo é um traço distintivo do brasileiro. Quando o brasileiro se deixa dominar por um ideal, ele se torna coerente e intransigente como os que mais o sejam. E nem é preciso afundar até um passado muito remoto, para se ter disso uma idéia exata.
Em uma grande reunião católica, citei três exemplos do que pode um brasileiro que abre generosamente seu coração à graça de Deus. Destes três exemplos, dois são mortos, e por isso posso novamente referir-me a eles. Quem, em energia, em santa intransigência, em combatividade inflexível e infatigável, em sublime austeridade e rigidez de costumes, em severa têmpera de caráter, em magnífica grandeza de alma, excedeu no Brasil o saudoso Dom Duarte Leopoldo e Silva? Quem, em ardente espírito de luta, em abnegação, em heroísmo, em espírito epicamente cavalheiresco, excedeu Jackson de Figueiredo? Ante estas duas grandes figuras rijas como o ferro e heroicas como o fogo, quem ousaria ainda dizer que o Brasil é um deserto de homens e de idéias, um triste deserto onde os homens perdem as idéias e quase deixam de ser homens?
Um escritor apresentou certa vez a seus leitores a figura de um cego, interrogando pelas ruas a todos os que passavam: “Oh tu, que tens a luz, o que fazes dela?” A mesma pergunta se poderia fazer a nós, católicos. O que fazemos nós, que temos dentro da Igreja, não apenas a luz, mas a luz meridiana de uma verdade plena?
Por que não compreendemos plenamente, e não gritamos em alta voz, que o Brasil se tem às vezes parecido um deserto de homens e de verdade, é isto exclusivamente porque não se entregou inteiramente ao domínio do Homem-Deus e da Verdade que Ele veio trazer ao mundo?
Lemos diariamente, nos Santos Evangelhos, que o Salvador curava os cegos, os aleijados, os paralíticos, os loucos, e que essas curas afirmavam implicitamente seu poder para curar todas as misérias morais do homem. Por que, então, não acreditamos realmente, seriamente, ardentemente, entusiasticamente, que na Sagrada Eucaristia todos os defeitos do Brasil poderão ser curados, e que o brasileiro ainda poderá ser um homem à altura das grandezas materiais dentro das quais nasceu?
“Envia o vosso Espírito, e todas as coisas serão criadas, e será renovada a face da Terra”, exclama a sagrada Liturgia. E esse Espírito que criou o mundo e que pode renová-lo, não quererá ou não poderá renovar este Brasil que Ele próprio criou?
Extraído de “O Legionário” de 29/1/1939)