Nosso Senhor é Rei de infinita grandeza, seu modo de ser é aristocrático. E, estando presente nos sacrários das igrejinhas espalhadas por toda a Terra, onde atende e conversa com qualquer pessoa do povo, Ele manifesta seu aspecto democrático.
O Magistério da Igreja ensina que das três formas de governo — monarquia, aristocracia e democracia — nenhuma é contrária à justiça e, portanto, à Lei de Deus. Assim, um povo pode optar por qualquer uma delas, conforme entenda, porque todas são lícitas.
A Revolução Francesa quis impor a república em toda a Europa
Foi o que se praticou na Idade Média, em que havia tanto monarquias como cidades aristocráticas sem chefe monárquico — por exemplo, a República Sereníssima de Veneza, cujo chefe, o Doge, era temporário, eleito pela aristocracia inscrita no livro de ouro de Veneza. Ele mesmo devia ser aristocrata, e substituído ao cabo de dez anos de mandato.
Havia também várias repúblicas democráticas na Idade Média, principalmente as cidades livres na Alemanha, Suíça e Itália, nas quais os plebeus burgueses, trabalhadores manuais elegiam o governo.
Nunca se sustentou, na Idade Média, a ideia de que uma destas três formas de governo fosse injusta e incompatível com as outras. Por isso, não passava pela mente de ninguém, naquela época, fazer uma cruzada de um país contra outro para impor determinada forma de governo. Pelo contrário, conviviam na maior boa vontade, na maior bonomia, e cada um se organizava como queria, segundo as peculiaridades, as circunstâncias, o transcurso dos acontecimentos históricos e mil outros fatores. Esta é a soberania pela qual cada um escolhe para si próprio o governo que entende.
Com a Revolução Francesa começaram a aparecer as guerras para impor o regime republicano à Europa inteira. A partir desse momento, estabeleceu-se uma luta das aristocracias e monarquias contra as repúblicas e vice-versa. Mas é porque o movimento republicano passou a ser animado pela Revolução, coisa que não acontecia na Idade Média.
Ora, a Revolução tem uma tese: a monarquia e a aristocracia são formas de governo opostas à dignidade humana e, como tais, contrárias ao Evangelho, à lei de Nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, é necessário eliminar, por meio de lutas libertadoras, esses regimes dos povos oprimidos.
Alguns inábeis defensores das monarquias e das aristocracias, vendo o caráter intrinsecamente mau do movimento republicano do século XIX, deduziram daí que a república era intrinsecamente má, sem se lembrarem dos precedentes anteriores, nos quais havia tantas cidades livres republicanas em que a investidura do chefe da república no cargo era feita na igreja, em cerimônia religiosa, assim como a investidura do monarca e do príncipe.
Leão XIII condenou a tese de que a democracia é uma forma de governo injusta e desenvolveu o que estou dizendo aqui, naturalmente com o brilho e com a autoridade dele.
O movimento modernista — heresia secreta que lavrou no tempo de São Pio X, o qual a esmagou com a Encíclica “Pascendi Dominici gregis”, mas renasceu no tempo de Bento XV sob outras formas — sustentava o contrário, isto é, que só a democracia é a forma de governo legítima.
São Pio X condenou severamente essa tese, de maneira que devemos pensar a respeito desse assunto o que o Magistério da Igreja nos indica.
Devemos admirar e tender para o mais perfeito
Entretanto, submetendo a ulterior juízo da Igreja, acrescento a este pensamento o seguinte: São Tomás de Aquino diz que a mais perfeita das formas de governo é a monarquia, sobretudo quando ordenada, composta com a aristocracia e a democracia.
Quer dizer, devem coexistir certos elementos de monarquia, de aristocracia e de democracia dentro das formas de governo. De que modo?
O Portugal do “Ancien Régime”(1), até o século XVIII, por exemplo, possuía isso muito bem distribuído, porque para a direção do reino havia o rei; para a direção da parte rural do país, a nobreza, ainda com os seus castelos, remanescentes vestígios dos antigos feudos; e havia, nas cidades habitualmente habitadas pela burguesia, um regime de foros, que eram liberdades da cidade em relação ao rei e ao senhor feudal, pelas quais se conferia à urbe o direito de governar a si mesma, os seus assuntos internos, desde que não contundisse com as leis do rei, nem com as prescrições do senhor feudal.
Essas liberdades forais eram muito apreciadas, e os estudiosos as têm analisado e considerado muito sábias, variando de cidade para cidade, conforme as circunstâncias de cada uma, a evolução histórica, etc.
Não era, portanto, uma espécie de “saco de gatos” de três formas de governo opostas; tampouco o sistema inglês: Câmara dos Lordes aqui, Câmara dos Comuns ali, vamos ver para que lado a balança pende… Não era isso. Cada um tinha a sua esfera.
Aliás, um francês definiu a província, a região, assim: esfera de influência de uma grande família. Acho a definição magnífica.
No regime misto a que me refiro, o governo do reino é do rei; a direção da província, da região pertence ao nobre; e a do município, ao povo que nele habita. É tão natural, tão claro, e constitui uma das modalidades possíveis de combinação dessas formas de governo.
Não obstante, parece-me que, sendo a monarquia a forma de governo mais perfeita, embora o povo que não viva em regime monárquico tenha esse direito — e até, se a monarquia não se ajustar bem às circunstâncias dele, ele não deve adotá-la —, é natural que ele tenha uma simpatia e uma admiração prevalente por aqueles povos onde a forma de governo mais perfeita possa se executar e desenvolver as suas excelências.
A humanidade deve, criteriosa e sabiamente, tender quanto possível para o mais perfeito e não pode considerar um título de orgulho estar no regime menos perfeito, como seria o meramente aristocrático ou democrático.
Essas considerações, acrescentadas com a devida veneração aos ensinamentos de Leão XIII e São Pio X, não me parecem contundir em nada com o pensamento deles.
As imagens de Nosso Senhor, elaboradas ao longo dos séculos, e o Santo Sudário
Então nasceria uma pergunta até muito bonita. Houve quem me indagasse a respeito dos aspectos aristocráticos e monárquicos do Sagrado Coração de Jesus. Mas como seria também a democracia no Sagrado Coração de Jesus? Não vamos ter medo da pergunta.
Haveria dois ângulos pelos quais poderíamos abordar o tema: um seria tomar Nosso Senhor Jesus Cristo como Ele é, e considerar o que de monárquico, de aristocrático e de democrático se irradia n’Ele. Outro ângulo seria o seguinte: tomado, em tese, o ensinamento d’Ele, encontrarmos o fundamento para dizer que em tal passagem ou circunstância Ele manifestou-Se mais favorável a esta ou àquela forma de governo.
De momento, parece-me mais conveniente a primeira fórmula.
Nas figuras de Nosso Senhor que eu tenho visto, em fotografias ou diretamente, nas catacumbas de Roma, há pinturas representando-O, por exemplo, como o Bom Pastor ou em outros de seus atributos, mas não me lembro de pinturas que representem sua Sagrada Face. Não se sabe de alguém que, tendo conhecido pessoalmente Nosso Senhor, O tenha retratado em imagens. Sou propenso a admitir que se conheciam suas feições por tradição oral.
Tendo caído o Império Romano do Ocidente, começaram as construções da alta Idade Média, e surgiram as imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo cujas feições seriam comprovadas, séculos mais tarde, com a descoberta do Santo Sudário.
Dir-se-ia ser muito explicável que cada povo modelasse o Divino Mestre segundo a imaginação, produto da própria cultura. Entretanto, as figuras elaboradas ao longo de séculos indicam, com maior ou menor precisão, mas indiscutivelmente, que a Pessoa do Santo Sudário é a mesma representada pelas imagens comuns.
Como se deu este salto por cima dos séculos e se “adivinhou” a figura Sagrada de Nosso Senhor Jesus Cristo?
Nunca tive tempo de estudar a fundo isso, mas li o suficiente para fazer uma conjectura séria, que é a seguinte:
Aos poucos, com o auxílio da graça, a piedade dos fiéis foi compondo essa figura. Pode ter acontecido também que algum Santo ou Santa tenha visto, em uma revelação privada, e tenha até pintado a figura de Nosso Senhor. Essa imagem agradou enormemente ao senso geral dos fiéis e, por causa disso, foi se espalhando de país em país e sendo aceita por todo o mundo como indiscutível, e assim se propagou por toda a Igreja.
Ora, isso é fruto da graça, uma espécie de revelação privada da verdade, que Nosso Senhor teria dado muito belamente à Igreja, à medida que ela ia se distanciando da vida terrena d’Ele, levada pelo curso da História. Com o passar do tempo, fomos nos afastando dos dias em que Ele esteve aqui presente, de um modo visível, sensível. Para consolar a nossa orfandade, Ele nos deixou, antes de tudo, a Sagrada Eucaristia, mas também o Sagrado Rosto d’Ele, por essas formas de produção, evolução e fixação do senso dos fiéis.
Vemos, por aí, como há mistérios lindíssimos que Nosso Senhor e Nossa Senhora guardam, e que só as posteridades depois vão conhecer. Maria Santíssima provavelmente conhecia a utilização que a Providência faria do Santo Sudário, mas não creio que os Apóstolos a conhecessem, nem mesmo Santa Maria Madalena; muito menos Nicodemos ou José de Arimateia. Entretanto, o Sudário com o qual Jesus foi sepultado seria, dali a dois mil anos, a prova de que Ele tinha estado naquele pano. Assim, na sepultura, morto, Ele estava envolto no documento que comprovaria a sua vinda e o seu futuro.
“Vox populi, vox Dei”
Este aspecto — a meu ver, lindíssimo — dá-nos muito a ideia do caráter de participação popular na vida da Igreja. Não houve um grande homem, não houve ninguém que aparecesse e dissesse: “Ele foi assim”, pintou-O e as multidões caíram de joelhos. Alguém terá pintado, mas o que de fato assegurou a expansão foi o consenso geral, uma espécie de sufrágio universal.
Há uma expressão que diz “vox populi, vox Dei”: a voz do povo de Deus é a voz de Deus. É muito bonito, muito ordenado, muito direito.
Dou outro exemplo.
No século XIX a “vox populi” se pôs a cantar o Stille Nacht, e o mundo inteiro a adotou como a música de Natal por excelência, por um consenso universal. Por que se canta o Stille Nacht aqui, na Nigéria, na Libéria e em quantos lugares há na Terra? A história dessa canção está ao alcance de todo mundo; sabe-se qual foi a aldeia alemã em que ela nasceu, o nome do compositor; há até um museuzinho organizado na casa dele. Entretanto, o que fez a celebridade dessa música foi o consenso, expresso por ela, a respeito do que todos sentiam por ocasião do Natal.
Não houve uma bula do Papa mandando cantar o Stille Nacht, nem qualquer outro decreto. Nem se trata de um canto litúrgico. Entretanto, não se compreende uma festa de Natal onde, antes ou depois da celebração litúrgica, não se cante o Stille Nacht.
Vê-se que a mão da Providência não é alheia a isso; muito pelo contrário, graças a Ela chegou-se a esse ponto maravilhoso de consenso popular geral. Mas esta é uma questão tão fina, tão sutil, que seria impossível explicá-la à maior parte das pessoas que, ouvindo o Stille Nacht, puseram-se a cantar também.
O senso é uma coisa diferente do raciocínio quadrado, e um povo pode ter um grande senso até não tendo grande instrução. Essa é, por exemplo, uma forma magnífica de colaboração do fator popular na Igreja.
Na própria infalibilidade da Santa Igreja há certa participação daquilo que eu chamaria de fator democrático. É admitido pela Teologia que Deus não pode deixar cair em erro todos os católicos em todos os lugares. E quando a Igreja inteira, com sua Hierarquia e os fiéis, aceita durante muito tempo determinada doutrina, aquilo é verdade infalível, ainda que não tenha sido explicitamente definida pelo Magistério eclesiástico.
Para que a colaboração popular seja proveitosa e possa dar o seu melhor fruto é preciso saber interrogar o povo e deixá-lo exprimir-se, permitindo que os costumes — que são a boa voz do povo — vão se constituindo.
Uma pessoa que, vendo um vale qualquer, pensasse: “Esse vale e a altura desses montes são semelhantes aos do Roncal. Que tal fazer aqui uns quinze municípios independentes?” Seria uma bobagem. Essas coisas nascem e não têm cópia no mundo inteiro. É a originalidade da coisa popular que não é feita para ser copiada, nascida do profundo dos costumes, do dia a dia, sendo em cada lugar de um jeito.
A meu ver, a voz do povo não se faz ouvir simplesmente por meio de propaganda pelo rádio e pela televisão, convocando depois a população para dar opinião sobre problemas com os quais certas parcelas do povo não têm nada a ver.
Por exemplo, o Governo do Império ou da República no Brasil precisa dispor medidas sobre a navegação fluvial no Amazonas. Ora, o que o eleitor gaúcho, na outra ponta do País, vai entender desse assunto? Entretanto, quando chegar a hora de votar uma lei sobre a navegação no Amazonas, a bancada do Rio Grande do Sul, como todas as outras, vai ter que opinar. O que o representante dos santistas ou dos cariocas, nascidos no litoral, pode decidir a respeito de problemas do Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, onde não existe mar? Hoje as coisas entre nós estão organizadas assim, todos os problemas nacionais devem ser objeto de decisão da parte do País inteiro. Entretanto, ninguém tem tempo de tomar nota de tudo isso.
O regionalismo sadio, deixando às várias partes do povo a liberdade de opinar de um jeito ou de outro, tem muitos elementos para a solução dos problemas nacionais. Nesse sentido, eu seria inimigo de quem, no Brasil, fosse separatista. Creio que o Brasil poderia ser mais largo como federação. Os Estados Unidos têm federação muito mais ampla do que o Brasil e, mesmo assim, parece-me que poderiam ser mais descentralizados ainda, porque aí se ouve a “vox populi”.
Tirar o colete de cem mil leis
Alguém dirá: “Mas o que o senhor pensa do sistema representativo moderno, com votos, câmaras, etc.?”
Penso que ele, habitualmente, é menos mau do que as ditaduras. Porém, a meu ver, nem ele nem as ditaduras valem nada. E se me perguntassem qual é a opção entre uma coisa e outra, eu diria: Nada! Eu não tenho nada a escolher nessa bandeja.
A minha sugestão é muito simples: tirar o mundo inteiro de dentro desse colete de cem mil leis em que as pessoas se embaraçam, e deixar a liberdade respirar e organizar a si mesma, sob certo controle, certa vigilância, principalmente num ponto, isto é, que a Lei de Deus seja observada. Porque se a Lei divina for conhecida, amada e praticada, tudo se arranja; se não for, não há o que conserte nada. Podem assar, cozinhar e fritar como quiserem, sai uma porcaria, seja monarquia, aristocracia ou democracia.
Tocamos, então, no ponto final: Nosso Senhor Jesus Cristo, visto sob seu aspecto democrático. O que quer dizer isto?
Considerado enquanto Rei de infinita grandeza, de majestade insondável e de uma bondade tal que Ele mora realmente presente no pequeno sacrário de cada igrejinha no vale do Roncal e de todos os outros “Roncais” que possa haver espalhados pelo mundo, bem como em qualquer pequena aldeia existente nos Andes ou no centro montanhoso do Brasil — enfim, onde for—, ali, pela sua presença eucarística, Nosso Senhor Jesus Cristo fala ao fiel que se ajoelha. É um dom que não tem qualificativo, acima de toda dádiva, uma beleza, uma maravilha!
Pela sua Igreja, Ele ensina a doutrina, alimenta e salva as almas, tornando-as assim bastante ordenadas para que elas constituam, naturalmente, um concerto de grandes e pequenos, como os instrumentos diversos de uma orquestra quando tocam o Stille Nacht. Assim também, todos juntos vão contribuindo com a sua própria opinião para formar o consenso geral. Donde saem as instituições originais, os modos de ser, as peculiaridades de cada lugar, sem que um país se sinta obrigado a copiar nenhum outro.
Deixem vir de baixo para cima o consenso geral, então se estabelecerão as leis e os costumes que duram séculos. O Sagrado Coração de Jesus é a fonte de tudo isso, é a sanidade do povo garantida pela santidade da ação divina d’Ele sobre cada homem”.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/12/1985)
Revista Dr Plinio 216 (Março de 2016)
1) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.