Inocência e admiração desinteressada – I

Tecendo considerações a respeito da inocência, Dr. Plinio mostra como ela nos incita a admirar tudo quanto é superior a nós, sem procurar nenhuma vantagem pessoal. E para ilustrar seu pensamento, comenta um filme sobre a cerimônia de casamento do Príncipe Charles com a Princesa Diana.

 

O  lado bom da alma pode ser desenvolvido à maneira de uma bobina, de um carretel que é desenrolado, cujo ponto de partida é a inocência. Quer dizer, colocada diante daquilo que Deus fez maior do que nós, a alma inocente se sente integrada. Isto lhe vem com a própria noção do ser, está colado, desdobra-se imediatamente da noção do ser; não é, portanto, uma ideia inata. A noção do ser é inata no homem, mas as outras são deduzidas, chameiam, chispam de dentro da noção do ser.

O homem existe para algo maior do que ele

Uma das noções mais imediatas é a do universo. Ou seja, cada um de nós está relacionado com uma porção de outros seres que formam um todo, e existimos de algum modo para o todo; como também, de certa maneira, existimos para algo que não é esse todo.

E realmente o homem é assim. Ele, de imediato, sente que existe para si, mas, logo no movimento seguinte, percebe — confusamente; só quando ele maturar conseguirá formular — que existe para algo muito maior do que ele: o universo.

Então, quando o homem vê algo tão maior do que ele, com o qual sente não ter proporção, ele se rejubila, de um júbilo análogo ao bem-estar que os pulmões têm quando entra ar fresco. Quer dizer, o bem próprio dos pulmões é receber aquele ar e impregnar o sangue com oxigênio, que se difunde para o corpo. Assim também é o homem: ao perceber algo maior do que ele, o homem todo é levado por um “élan” para aquilo, como quem diz: “Mas esse todo, essa ordem do ser na qual vivo, confere coisas magníficas, e sou maior do que eu suspeitava, vendo que isso é tão grande!”

A criança inocente não age por egoísmo

Considerem uma criancinha deitada no berço e que está apenas tomando os primeiros conhecimentos do mundo externo. Vem alguém e agita diante dela uma esferazinha de vidro com uma cor brilhante, dourada, por exemplo. A criança bate as mãos e, sem pensar ainda, estende os braços.

Por que ela faz isso? Porque a criança sente que ela tem um nexo com aquilo, o qual a enriquece e completa de algum modo; então, ela tende para aquilo.

Aqui está o ponto de partida da inocência, a qual leva a criança a se rejubilar com o que é insignemente maior do que ela. Daí a admiração pelos pais, pelos mais velhos que ela vai conhecendo, pois a criança vê que são uma ampliação dela mesma. E também a admiração por toda forma de maravilhoso, que se põe diante da criança. Mas essa admiração não é egoística; é uma alegria porque aquilo é daquele jeito, e uma consonância: “Como é bom, como me rejubila que haja algo maior do que eu! Eu encontro, na contemplação daquilo, algo que me repousa, me enche de ar!”

O que ela encontra? Alguém dirá: “A vantagem própria”. Afirmo: “Não. É uma coisa muito mais alta: seu fim!”

Aqui está a específica noção que é preciso tomar em consideração. Aplicando o que foi dito a mim mesmo, não é por egoísmo, por vantagem pessoal, que eu vejo aquilo que é meu fim, mas é por mera veneração, por mero entusiasmo.

Porque atingi o meu fim, é claro que me realizo, sou coberto de recompensas, mas há algo de desinteressado, de puro, que vai além do amor que uma pessoa deve ter por si mesma, e nisso está o ponto, digamos, o polo de atração da inocência. É o por onde o homem sente e sabe que não é o fim de si mesmo, mas que ele existe para estar em nexo, em veneração e a serviço de algo maior.

O desejo do gozo

Há na criança outro movimento, que é horizontal: o encanto com as coisas que têm proporção com ela. É um movimento legítimo, mas, integrando-se naquele conjunto, a ideia de fim lhe aparece menos clara do que na consideração do que é mais alto; e a ideia dela mesma surge mais clara: eu, eu, eu. E na relação horizontal a criança começa a querer ter uma série de coisas do seu tamanho, de sua proporção. Por exemplo, não podendo ser dona de uma pessoa, quer ser dona de uma boneca; não sendo possível ter um automóvel, que ela vê passar na rua, a criança quer possuir um automovelzinho. Ela quer ter um mundinho em miniatura com o qual mexa, se entretenha em certas horas, sobretudo deseja ter muitíssimo mais relações com as outras crianças do que com os mais velhos. E acaba havendo uma fase da evolução da criança em que os da mesma idade têm muito mais influência, peso, atrativo do que os pais, os avós, os tios que ficam para o fundo da cena.

Nesse horizontal, a abnegação aparece muito menos, e a criança se dá conta de que, se alguns deleites conduzem à admiração desinteressada, há outros prazeres que levam ao gostoso. E aí muito facilmente — se a primeira parte não está profundamente vincada na alma — a criança começa a conceber a vida como uma sucessão de deleites, e ela só procura prazeres.

A partir deste momento a inocência começou a minguar, a procura do verdadeiro fim desaparece. E o fim passa a ser gozar; a vida é uma oportunidade para gozar.

Alguém lhe dirá:

— Mas você não sabe que um dia vai morrer?

— É verdade, porém leva tanto tempo para eu morrer, que cuidarei disso mais tarde.

— Olhe, você pode falecer de repente!

— São tão poucos, que é melhor deixar isto de lado.

Ela quer gozar, gozar, gozar…

Na bitola do gozo desaparece a inocência, e o gozo traz essa atitude de alma, que Mitterrand(1) assim descreve: “Quero tudo, já e para sempre!” Resultado: começa a inveja e o pesar de que um outro tem o que ela não possui.

Cerimônia de casamento do Príncipe Charles; dois estados de espírito opostos

Todos viram ontem as cenas ocorridas no Buckingam Palace(2), e puderam observar o estado de espírito de entusiasmo que dominava a multidão.

Qual seria o estado de espírito de um revolucionário no meio da multidão? E haveria muitos deles que lá estavam para assistir… Seria o oposto: “Por que eu não estou sendo objeto dessas homenagens? Por que não sou o Charles?” E uma moça revolucionária pensaria: “Por que eu não sou a Diana?”

Porque os revolucionários querem ter aquele gozo só para si e, não sendo isso possível, eles desejam que ninguém tenha. São horizontalizantes. A inveja nasceu do desejo do gozo.

Pelo contrário, os que estão ali aclamando o Charles, a Diana e os outros personagens que estão no balcão do Palácio, pensam de outra maneira: “Como eles são maiores do que nós e simbolizam esse todo que é a Inglaterra! Como é magnífico haver uma nação que se exprime nesses símbolos! Como é magnífico pertencer a essa grande nação! Oh, que alegria! Encontramos algo de mais alto, mas queremos tudo isso já e eternamente!”

Esse sentimento só se justifica diante da ideia de que há um outro Ser, muito acima daquelas pessoas que estão no alto do balcão, e que nos dá tudo que nossa alma ambiciona. Gostaríamos que fosse já, quer dizer, tendo a certeza de que nós cumpriremos nesta vida a nossa missão, que os Céus se abram e desça para a Terra o que esperamos. O maravilhamento dos pastores na noite de Natal, quando apareceram os Anjos, nos dá a ideia dos Céus abertos e desse fim eterno que fala a nós.

Esta é uma festa da tradição. Quantos reis se sucederam; como passam esses homens! Os avós dos reis de hoje foram aclamados pelos meus avós, mas os meus décimos avós — digamos, no século XVI — aclamaram os décimos avós deles. E mais e mais para trás, chega-se ao momento em que eu tenho que imaginar a Inglaterra, ilha onde não morava ninguém, e chegaram os primeiros bretões, os primeiros celtas, e começaram a ocupá-la. E recuando ainda mais, posso pensar naqueles reis primeiros da Bretanha grande, em oposição à Bretanha pequena, reis de clareiras, de bosques, sentados num trono de madeira, presidindo as reuniões de uma tribozinha com cem pessoas no máximo, e venerados como monarcas. Todos eles morreram, meus antepassados morreram; nós que estamos aqui neste auditório morreremos, e também todos os homens.

Em que sentido queremos tudo, já e para sempre?

Mas Deus é eterno; tendo a Ele, eu tenho tudo. O Criador se dá todo a mim, como se só eu existisse. Nesse sentido, queremos tudo, tanto quanto possível já, e eternamente; para lá rumam as nossas almas.

Vê-se que entre a autoridade suprema na ordem temporal e na ordem espiritual, e Deus há uma distância infinita, e essas autoridades apenas educam, ajudam a alma a tender para o que a criança admirou, na inocência primeva, quando pela primeira vez esteve diante de uma bolinha dourada, abriu os braços e sorriu. E quando a pessoa, na hora da morte, fizer seu ato de Fé e se recomendar a Nossa Senhora, terá a certeza de possuir tudo, já e eternamente.

O afundar dentro da morte é o entrar no Céu.

Vistas as coisas com esse estado de espírito, compreendemos que não seja só na Inglaterra — com toda a riqueza, todo o fausto, todo o esplendor, toda a grandeza da cerimônia a cujo filme assistimos ontem — que os súditos sintam isso, mas até nos menores países, e mesmo nas formas de governo mais diversas.  v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira(Extraído de conferência de 2/10/1981)

Revista Dr Plinio 182 (Maio de 2013)

 

1) François Maurice Adrien Marie Mitterrand (* 1916 – † 1996). Foi um dos presidentes da República da França.

2) Dr. Plinio se refere a cenas da cerimônia de casamento do Príncipe Charles com a Princesa Diana, realizada em 29 de julho de 1981.

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